Uma
História do Nosso Acre
Por: Jorge Viana
Tenho paixão pelo Acre. É a terra onde nasci, minha família tem raízes profundamente fincadas nela. E é um cantinho especial da Amazônia, cheio de beleza e com um povo variado e cheio de histórias. O que mais me encantou, desde criança, foi a História do Acre, do modo como ouvi contada por meu pai, Wildy Viana. “Seu Wildy” viu de perto uma boa parte dessa história e ouviu o começo dela da boca dos mais antigos. E falava, com grande admiração, sobre a corrida da borracha e a chegada dos nordestinos, a revolução, o movimento autonomista, todos os grandes momentos e acontecimentos. E eu fui me encantando com cada personagem, começando pelas figuras únicas de Plácido de Castro, que liderou a Revolução, e o espanhol Luiz Galvez, que fundou uma República na floresta, feito quase inacreditável. Conheci pessoalmente outros personagens, como o Senador Guiomard dos Santos. E pude conviver e trabalhar junto com os do “meu tempo”, como Chico Mendes, que nos deixou um ideário que serve de inspiração não apenas para os povos da floresta, mas para toda a humanidade.
Compartilho e sustento a idéia de que nosso povo lutou para ser brasileiro e tem seus próprios motivos para orgulhar-se de sua história e ter nela um forte elemento de sua autoestima. O povo acreano é diferente, formado por tantas culturas misturadas e talhado na luta e na revolução. Sinto orgulho e alegria de fazer parte desse povo.
Sempre tive vontade de contar a História do Acre, da maneira como a aprendi narrada pelos mais velhos ou na leitura dos livros da biblioteca de meu pai, que era um grande colecionador de tudo o que se escrevia sobre nossa terra. Também queria, de alguma forma, reconhecer e retribuir o trabalho dos professores de História com quem estudei, ou mesmo aqueles que encontrei já adulto e cujas pesquisas foram importantes para meu trabalho e para a definição de projetos e políticas públicas em nosso estado. Mas essa vontade de contar nossa história se tornou mais intensa quando era governador e incentivei a gravação da minissérie “Amazônia – de Galvez a Chico Mendes”, produzida pela Rede Globo, de autoria da escritora acreana Glória Perez. Foram muitas e animadas conversas com a Glória, com o músico acreano consagrado internacionalmente, João Donato, e com o também histórico jornalista acreano Armando Nogueira. Tive oportunidade de ouvir histórias incríveis, contadas da maneira mais criativa e deliciosa, renovando minha paixão pelo Acre.
Pretendo realizar esse projeto em breve, com a colaboração de amigos historiadores e escritores. Mas não gostaria de abrir minhas páginas na internet sem um espaço que desse, aos leitores, ao menos um resumo da história política do Acre. Penso que esse resumo, que agora apresento, é uma referência importante para estudantes, jornalistas, pesquisadores e leitores em geral, interessados em entender melhor o que se passa nesta parte da Amazônia desde o final do século 19, quando o “Uaquiry”, rio dos jacarés, virou Acre e atraiu os olhares do mundo.
Povoamento
Por: Jorge Viana
Os povos indígenas têm sua própria história, muito mais antiga, dos séculos que viveram na floresta antes da chegada dos colonizadores. Suas narrativas se referem à formação dos povos e sua distribuição no território dos Altos Rios e estão misturadas aos mitos da criação do mundo e surgimento dos seres que habitam a floresta. Os registros históricos do Acre, nessa região de fronteira entre o Brasil, Peru e Bolívia, tem menos de dois séculos e estão marcados pelo olhar de estranhamento dos que chegavam, vindos de outras regiões do planeta e enfrentando as dificuldades de penetrar na floresta.
O povoamento do Acre, assim como boa parte da Amazônia, foi feito sob o signo da malignidade do meio ambiente. Os exploradores europeus, já escolados por muitos séculos de expedições por todas as partes do planeta, eram os primeiros a anunciar o caráter maléfico da umidade, da imensa quantidade de insetos, da insalubridade geral das florestas tropicais. Principalmente a maior de todas, a Amazônia. No ambiente amazônico tudo é grande e farto; por que haveria de ser diferente com relação as suas febres e endemias?
A terra do ouro negro, das terras inesgotáveis e inexploradas, das árvores fartas em um leite que valia como ouro e da fortuna rápida, logo se transformava diante dos olhos incrédulos dos imigrantes nordestinos, gaúchos, cariocas, espanhóis, italianos e sírio-libaneses em terrível “inferno verde”, devorador de almas.
Porém, para boa parte desses homens não havia retorno possível. Para os fugitivos da Guerra de Canudos, para os rebelados dos pampas gaúchos, para os tangidos pela seca, para os repudiados de toda sorte, não havia outro caminho possível senão a floresta que a todos acolhia e escondia. A única opção era mesmo encarar a solidão das colocações de seringa, dias e dias internados mata adentro, ou a falta de leis e de condições para o seu cumprimento nos raros povoados espalhados ao longo dos rios.
Seria necessário que uma figura de renome nacional como Euclides da Cunha, viesse ao Acre (em 1905) para desmentir os mitos sobre o clima e o meio amazônico. Através de artigos como “Um clima caluniado” e “Rios em abandono” – depois reunidos no livro “À margem da história” – Euclides deixou claro que a raiz dos males que afligiam a população espalhada ao longo dos rios acreanos não era o meio ambiente, mas as condições de transporte e de trabalho que matavam anualmente milhares de homens. Os vapores circulavam levando e trazendo pessoas, mercadorias, animais e produtos do extrativismo florestal em total promiscuidade, sem a menor preocupação com a higiene e a saúde dos passageiros. A alimentação, tanto nessas embarcações como nos próprios seringais, era a pior possível. E o trabalho imposto aos seringueiros nos primeiros tempos era sobre-humano.
Apesar de tantos obstáculos, reais ou imaginários, o povoamento do Acre se realizou a partir das últimas décadas do século XIX e conseguiu fixar uma sociedade que vivia da e na floresta, longe dos mitos da insalubridade, descobrindo modos e estratégias para desfrutar de uma vida saudável em plena Amazônia.
A Guerra do Acre
Por: Jorge Viana
“Terras incontestavelmente bolivianas.” ⎯ Assim se expressavam as autoridades brasileiras sobre as terras do Acre. Enquanto não houve ocupação efetiva da terra, estava tudo bem, mas logo o mercado internacional demandou maior produção de borracha e a região foi intensamente povoada. A questão das fronteiras tornou-se, então, um grave conflito entre nacionalidades.
A partir de 1880 grandes levas de imigrantes nordestinos vieram para o território ainda sem dono e sem lei. Os rios Purus e Juruá, como afluentes do rio Amazonas, davam acesso direto aos vapores que vinham de Belém e Manaus trazendo milhares de brasileiros e levando toneladas de borracha. Já os bolivianos possuíam contra eles a direção de seus rios mais explorados que levavam para o rio Madeira e não para as terras acreanas, caminhos que passavam por grupos indígenas de língua Pano muito aguerridos na defesa de seu território e uma sociedade do altiplano andino que apresentava grandes dificuldades de povoamento na planície amazônica.
A 1ª Insurreição
Por: Jorge Viana
Ao surgirem as primeiras proclamações bolivianas de posse do Acre, em 1895, os brasileiros já estavam ali situados há pelo menos 15 anos. Com grandes e produtivos seringais que comerciavam sua borracha com as casas aviadoras de Manaus e Belém e através destas, com os centros consumidores na Inglaterra, França, Alemanha, Holanda e os Estados Unidos, o povoamento brasileiro dos altos rios Purus e Juruá era já um fato consumado.
Ainda assim, mal se iniciava o ano de 1899, quando o governo da Bolívia tentou uma cartada decisiva: ocupar militarmente o rio Acre enquanto negociava um contrato de arrendamento com capitalistas europeus e norte-americanos interessados na exploração da borracha da região. Entretanto, o domínio sobre o Acre não seria tão fácil.
Logo, alguns brasileiros revoltados contra as duras medidas alfandegárias dos bolivianos decidiram contestar a administração estrangeira do território povoado por brasileiros. Assim, sem nenhum aviso, já em maio de 1899, ocorria a Primeira Insurreição Acreana, comandada por José Carvalho, quando os bolivianos foram pela primeira vez expulsos de Puerto Alonso, o povoado que eles mesmos haviam fundado nas margens do rio Acre.
A República do Acre
Por: Jorge Viana
Enquanto isso tudo se dava, Luiz Galvez – espanhol de nascimento, mas cidadão do mundo por vocação – partia de Manaus para o Acre. Galvez levava o apoio velado do governo amazonense já que o governo brasileiro exigia o fim dos conflitos no Acre e a devolução do território aos bolivianos. E foi durante o encontro dos seringalistas do Acre com Galvez que surgiu uma solução para o impasse em que estavam metidos os revoltosos.
Com a palavra de ordem: “Já que nossa pátria não nos quer, criamos outra” Galvez e os brasileiros da região proclamaram criado o “Estado Independente do Acre”. Uma república da borracha fundada no dia 14 de julho de 1899, de forma a reverenciar a Revolução Francesa que 110 anos antes havia estabelecido os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade fundamentais para a formação da cidadania contemporânea.
Foram oito meses de governo do Presidente Galvez, nos quais se tentou organizar escolas, estabelecer normas de saúde e instituir uma legislação de exploração racional da borracha adaptada às condições ambientais locais. Oito meses de ordem em uma região que nunca havia conhecido a mínima organização política ou administrativa. Um Estado Independente cujo maior objetivo era se libertar do domínio boliviano para ser anexado ao Brasil.
Entretanto, o presidente Campos Sales, em pleno funding loan, seu acordo com os banqueiros ingleses para escapar da crise econômica da jovem República brasileira, estava mais preocupado com a política dos governadores e com o apoio da oligarquia cafeeira do que com a sorte dos brasileiros da longínqua Amazônia ocidental. Assim, já em março de 1900, chegavam ao Acre três navios da marinha brasileira para prender Galvez e devolver as terras à Bolívia. Ainda que os jornais das principais cidades brasileiras não se cansassem de denunciar o inteiro absurdo da situação, o governo manteve sua posição contrária à causa acreana.
A Expedição dos Poetas
Por: Jorge Viana
Mas, mesmo com o apoio do governo brasileiro, as autoridades bolivianas não conseguiram pacificar a região. Os “revolucionários” brasileiros se mantiveram mobilizados e em constante atitude de confronto. O Governo do Amazonas, mesmo contra a vontade federal, continuava apoiando a luta acreana e chegou a financiar a famosa “Expedição dos Poetas”, poderosa em ideais e frágil em combate, cujo maior resultado foi ter mantido viva a luta contra a dominação boliviana.
Até que, nos primeiros meses de 1902, uma nova notícia de arrendamento do Acre desabou sobre a opinião pública nacional. A companhia comercial Bolivian Syndicate de capital anglo-americano estava arrendando o Acre pelo prazo de vinte anos com amplos poderes territoriais, militares e alfandegários. Seu contrato com a Bolívia implicava também na livre navegação internacional dos rios amazônicos e feria frontalmente a soberania brasileira sobre a Amazônia.
A Revolução de Plácido de Castro
Por: Jorge Viana
Enquanto o governo federal era sacudido de sua letargia pelo clamor nacional, os brasileiros do Acre mantinham a resistência armada contra os bolivianos. A notícia do Bolivian Syndicate precipitou os acontecimentos, que se configuraram como uma verdadeira guerra.
De um lado o exército regular da Bolívia entrincheirado em alguns pontos estratégicos do rio Acre. De outro um exército de seringalistas e seringueiros organizados pelo ex-militar Plácido de Castro. Uma guerra que foi conflagrada em Xapuri, em agosto de 1902, e só foi concluída seis meses depois em Puerto Alonso com um saldo de quinhentos mortos em uma população de dez mil indivíduos.
Os brasileiros do Acre mais uma vez haviam expulsado os bolivianos e proclamado o Estado Independente do Acre como forma de obrigar o governo federal a considerar a região como litigiosa. E tamanha foi a pressão nacional que Rodrigues Alves, recém instalado no cargo de presidente, teve que reverter a posição oficial brasileira estabelecendo negociações que culminaram com a assinatura do Tratado de Petrópolis e anexaram o Acre ao Brasil em novembro de 1903.
Finalmente, depois de quatro anos de resistência armada, o Acre passou a fazer parte do Brasil e os brasileiros do Acre conquistaram o direito de se autodenominar acreanos.
O Território Federal do Acre
Por: Jorge Viana
O governo do Amazonas esperava que as ricas terras acreanas lhe fossem concedidas depois de anexadas ao Brasil. Afinal de contas o Amazonas havia investido grandes somas na Revolução Acreana em suas diferentes etapas. Mas os acreanos haviam arriscado não só terras e fortunas, como suas próprias vidas nas trincheiras e varadouros da guerra contra os bolivianos. Era justo então esperar que o Acre se tornasse o mais novo estado da federação brasileira e seus cidadãos pudessem usufruir os mesmos direitos políticos básicos de qualquer brasileiro.
Contra todas as expectativas, o governo federal decidiu não atender a ninguém, senão a seus próprios interesses. No princípio de 1904, o Acre se tornou o primeiro Território Federal da história brasileira. Exemplo de um novo sistema político-administrativo, não previsto na Constituição, que estabelecia que o Acre seria administrado diretamente pela Presidência da República, a quem caberia nomear seus governantes e arrecadar impostos.
Para justificar sua atitude o governo federal alegou que precisaria recuperar o capital utilizado para afastar o Bolivian Syndicate das negociações de limites. Também precisava cumprir as cláusulas previstas no Tratado de Petrópolis: indenização de dois milhões de libras esterlinas e a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Por isso, toda a estupenda arrecadação de impostos sobre a borracha acreana teria que ser canalizada para os cofres da União.
O resultado imediato da surpreendente medida do governo brasileiro foi que a sociedade acreana passou a uma condição de tutela e dependência do poder executivo federal sem precedentes na história brasileira.
Como Território, o Acre não teria direito a uma Constituição própria como os outros estados federados; não poderia arrecadar seus impostos, dependendo dos repasses orçamentários do governo federal – que eram sempre infinitamente inferiores às necessidades de uma região onde tudo estava por fazer – e sua população não poderia votar para as funções executivas ou legislativas (que sequer existiam) na região.
Portanto, os acreanos que haviam conquistado pelas armas o direito de serem brasileiros, ao alcançar a vitória foram condenados a serem cidadãos de segunda categoria em seu próprio país. Enquanto isso o Presidente da República – de seu gabinete no Rio de Janeiro a mais de quatro mil quilômetros de distância dos problemas acreanos – nomeava sucessivamente militares, magistrados ou políticos derrotados para governar o Território Federal do Acre.
As Revoltas Autonomistas
Por: Jorge Viana
Começava assim uma nova etapa de lutas da sociedade acreana. Agora não mais contra os estrangeiros, mas contra o governo de seu próprio país. Pois logo se perceberia que das fabulosas somas arrecadadas sobre a exportação de borracha e sobre a importação de mercadorias para abastecer os seringais, o governo federal mandava apenas uma pequena parte para a administração do Território, onde não havia escolas, hospitais ou quaisquer outras estruturas públicas. Além disso, os governantes nomeados para o Acre não possuíam o menor compromisso com aquela sociedade, aproveitando as verbas públicas em proveito próprio e afastando os acreanos do exercício de cargos políticos ou administrativos. A situação era agravada ainda pela distância e isolamento das cidades acreanas e pela ineficiência do poder judiciário.
A autonomia política do Acre tornava-se então a nova e necessária bandeira de luta do povo acreano. Na verdade, era uma aspiração muito simples: a transformação imediata do Território Federal do Acre em Estado autônomo da federação brasileira. E para lutar por essa causa começaram a ser fundados clubes políticos e organizações de proprietários e/ou de trabalhadores em diversas cidades como Xapuri, Rio Branco e Cruzeiro do Sul.
Em poucos anos a situação social acreana se agravaria muito. Não bastasse a concorrência da borracha que começava a ser produzida no sudeste asiático, a partir de sementes amazônicas contrabandeadas pelos ingleses, os desmandos cometidos pelos governantes nomeados para o Acre obrigaram a sociedade a reagir.
A radicalização dos conflitos logo produziria novas cicatrizes no tecido social acreano. Plácido de Castro, um dos líderes da oposição ao governo federal, foi assassinado (ainda em 1908) numa emboscada que todos sabiam de antemão que iria ocorrer. Em Cruzeiro do Sul, em 1910, a primeira revolta autonomista depôs o Prefeito Departamental do Alto Juruá, proclamando a criação do Estado do Acre. Cem dias depois, tropas federais atacaram os revoltosos e restabeleceram a “ordem” e a tutela. Sena Madureira em 1912 e Rio Branco em 1918 também conheceram revoltas autonomistas que foram igualmente sufocadas à força pelo governo brasileiro.
O Fim do Ciclo da Borracha e os Movimentos Autonomistas
Por: Jorge Viana
A sociedade acreana viveu então um dos períodos mais difíceis da sua história. Os anos 20 foram marcados pela completa decadência econômica provocada pela queda dos preços internacionais da borracha graças à produção infinitamente mais barata dos seringais de cultivo asiáticos. Os seringais acreanos entraram em falência, uma boa parte dos seringueiros começou a voltar para suas regiões de origem e a desesperança geral transformou o Acre num “igapó de almas” segundo a descrição de Océlio de Medeiros no livro “A Represa”. Toda a imensa riqueza acumulada durante os anos áureos da borracha amazônica havia sido drenada para os cofres federais relegando o Acre ao completo abandono oficial.
Era tempo de se buscar novas formas de organização social e de encontrar novos produtos que pudessem substituir a borracha no comércio internacional. Os seringais se transformaram em unidades produtivas mais complexas. Teve início a pratica de uma agricultura de subsistência que diminuía a dependência de produtos importados, uma intensificação da colheita e exportação da castanha e o crescimento do comércio de “peles de fantasia”, como era chamado então o couro de animais silvestres da fauna amazônica. Começavam assim, impulsionadas pela necessidade, as primeiras experiências de manejo dos recursos florestais acreanos.
Além disso, a escassez da mão de obra nordestina levou ao emprego crescente das comunidades indígenas remanescentes nos seringais e os comerciantes sírio-libaneses substituíram as casas aviadoras de Belém e Manaus na função de abastecer os barracões e manter ativos os seringais acreanos. Entretanto, a situação de tutela política sobre a sociedade acreana se mantinha inalterada.
Nem mesmo o novo período de prosperidade da borracha, provocado pela Segunda Guerra Mundial, foi capaz de modificar esse quadro. Durante três anos (1942-1945) a “Batalha da Borracha” trouxe milhares de famílias nordestinas para o Acre, repovoando e enriquecendo novamente os seringais.
Essa melhoria do contexto econômico fez com que os anseios autonomistas ganhassem nova força. Mas os acreanos teriam que esperar ainda quase vinte anos para ver sua antiga aspiração de autonomia política ser realizada. Só em 1962, os acreanos conseguiram através de uma longa batalha legislativa transformar o Território em Estado.
O Acre, que havia sido o primeiro Território Federal de nossa história, foi também o primeiro a ser “elevado” à categoria de estado, já que o governo brasileiro havia estendido o sistema territorial a outras regiões (talvez não por coincidência sempre na Amazônia: Rondônia, Amapá, Roraima).
Foram 58 anos de resistência, entre 1904 e 1962, até que o movimento autonomista finalmente conquistasse para os acreanos os mesmos direitos básicos e essenciais de qualquer cidadão brasileiro. Pela primeira vez na história os acreanos poderiam exercer plenamente sua cidadania.
O Estado do Acre
Por: Jorge Viana
No princípio dos anos sessenta os seringais acreanos ainda estavam em plena atividade apesar dos preços mais baixos da borracha no mercado externo. Anos de tutela federal haviam produzido uma forte dependência do Acre em relação aos repasses orçamentários da União. Portanto, a criação do Estado do Acre, em 15 de junho de 1962, e a possibilidade da primeira experiência democrática da sociedade acreana anunciavam grandes mudanças e o início de um novo tempo para a região.
Nas eleições realizadas ainda em 1962 confrontaram-se os dois grandes e hegemônicos partidos da época. Pelo PSD a candidatura ao governo do estado coube a sua maior liderança: Guiomard Santos, mineiro de nascimento, militar que havia sido governador do Território no fim da década de 40, dominou a cena política acreana por mais de vinte anos e se elegeu por três vezes consecutivas para o cargo de Deputado Federal. Como se não bastasse, foi o autor da lei 4.070 que transformou o Acre em Estado. O PTB, a princípio dividido, acabou escolhendo a surpreendente candidatura de um jovem acreano de Cruzeiro do Sul: o professor José Augusto de Araújo de apenas 32 anos.
O Acre durante a Ditadura Militar
Por: Jorge Viana
Mais uma vez a sociedade acreana seria obrigada a conviver com governantes indicados pelo poder federal, condição que perduraria até 1982, quando a “abertura lenta, gradual e segura” voltaria a permitir novas manifestações democráticas, não só no Acre, como no resto do país.
Entretanto, as consequências da Ditadura Militar para o Acre, como para boa parte da Amazônia brasileira, foram muito mais profundas e dolorosas do que aquelas relativas ao exercício dos direitos políticos. O início da década de 70 foi marcado por uma nova diretriz governamental para o “progresso econômico” da região. Sob o discurso de “integrar para não entregar” foi estimulada uma nova ocupação da Amazônia, com grandes projetos mineradores, madeireiros e agropecuários recebendo financiamento internacional e incentivos fiscais em nome de uma pretensa defesa da soberania brasileira.
No Acre o resultado mais evidente dessa política desenvolvimentista foi a “invasão dos paulistas”, como eram chamados genericamente os novos imigrantes que vinham do sul do país atrás de terras fartas e baratas. Assim, o Acre ajudava a aliviar os conflitos rurais da região Sul e ganhava uma nova política econômica que, segundo seus apologistas, seria capaz de substituir com vantagens o já combalido extrativismo da borracha.
Com a transformação do Banco da Borracha em Banco da Amazônia e o corte de outras fontes de financiamento, muitos seringais faliram e foram vendidos por preço muito baixo. Em suas terras instalou-se a agropecuária. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a propaganda oficial anunciava o Acre: “um sul sem geadas, um nordeste sem seca” e, mais tarde, “o filé mignon da Amazônia”. E foram muitos os empresários que acreditaram no novo eldorado amazônico trazendo para cá todo seu capital. Mas junto com esses vinham também um sem-número de grileiros e especuladores.
O resultado de todo esse processo de mudança do eixo econômico da Amazônia brasileira acabou arrebentando sobre o lado mais fraco: as populações tradicionais da floresta. Repentinamente, índios, seringueiros, ribeirinhos e colonos viram suas terras sendo invadidas e devastadas em nome de um novo tipo de progresso que transformava a floresta em terra arrasada.
Acelerou-se a migração para as cidades. Mas a maior parte da população migrante não tinha outra profissão além de colher os produtos da floresta. A maioria sequer sabia ler e escrever, tamanho era o abandono oficial em que tinham vivido até então. Expulsas da terra, muitas vezes por jagunços armados que ateavam fogo em seus barracos, milhares de famílias encostaram-se na periferia urbana, formando assim os primeiros bairros populares em terrenos insalubres onde a miséria e a doença tinham campo fértil para se espalhar.
Nos anos 70, a sociedade acreana vivia novamente um momento de grande tensão social. Ressalve-se as tentativas do governo estadual, nas gestões de Geraldo Mesquita e Joaquim Macedo, de reverterem as políticas implementadas por seu antecessor, Vanderlei Dantas. Mesmo sendo nomeados pelo regime militar, as ligações dos governadores acreanos com a sociedade local historicamente constituída fizeram com que esses governo se inclinassem por uma política econômica de valorização da produção local e, no plano político, de convivência pacífica com os movimentos de seringueiros e índios, que resistiam ao desmatamento e às novas ocupações em seus territórios tradicionais.
A Aliança dos Povos da Floresta
Por: Jorge Viana
A partir de 1975 um movimento de resistência foi se consolidando no Acre, como forma de contrapor o “progresso” que era imposto pelo governo federal à Amazônia com a chamada expansão da fronteira agrícola. Os seringais falidos haviam sido vendidos a baixos preços para fazendeiros do sul e sudeste do país, o que provocou enormes derrubadas de floresta na região. Nesta época, a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) organizou os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais em Brasiléia, Xapuri, Rio Branco e Sena Madureira. Surgiram, em Brasiléia, sob a liderança de Wilson Pinheiro, os “empates” como forma de resistir ao desmatamento. Mais adiante, o líder seringueiro Chico Mendes, em Xapuri, passou a combinar a luta fundiária com a defesa do meio ambiente e a proposta de criar Reservas Extrativistas para regularizar o usufruto da floresta pelas famílias que nela viviam.
Com a implantação da primeira Ajudância da FUNAI no Estado, foi iniciado o processo de demarcação e regularização de terras indígenas acreanas. A igreja católica do vale do Acre, de perfil progressista, reforçou a luta popular com as Comunidades Eclesiais de Base. Intelectuais, artistas, estudantes e trabalhadores em geral criaram organizações civis e um intenso movimento social em Rio Branco. Jornalistas e militantes da oposição criaram o jornal “O Varadouro” para noticiar os graves problemas sociais, especialmente os conflitos pela posse da terra. Eram tempos em que a democracia brasileira ainda engatinhava, com suas instituições fragilizadas e sujeitas às infiltrações dos interesses econômicos diversos, inclusive do crime organizado. O movimento de resistência perde Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, que foi assassinado. Muitas outras mortes se seguiram, culminando com a de Chico Mendes em dezembro de 1988.
O Movimento Ambientalista havia tornado Chico Mendes uma figura pública conhecida e reconhecida em todo o mundo por sua luta em defesa da floresta e de seus povos. Sua morte teve repercussão no mundo todo e criou uma enorme pressão sobre os organismos financeiros internacionais, que foram obrigados a rever critérios de investimento na Amazônia. O Brasil começou a despertar para a importância desse líder seringueiro e do movimento criado no Acre.
A FPA e os novos tempos do Acre
Por: Jorge Viana
O Acre sofreu com a morte de Chico Mendes e mergulhou numa década de crise moral e institucional. Tornou-se comum o Estado aparecer nas páginas policiais da imprensa nacional. Era necessário promover uma nova articulação política capaz de tirar o Acre dessa situação.
Surgiu então a Frente Popular do Acre, uma aliança política, criada no final de 1989, formada por cinco partidos: PT, PPS, PCdoB, PV e PDT e uma plataforma de governo inspirada nas idéias de Chico Mendes e nas principais experiências autonomistas ao longo da história acreana. Foi a primeira vez que o Partido dos Trabalhadores chegou ao segundo turno numa eleição majoritária no país. Dois anos depois a Frente Popular ampliou seu arco de alianças para doze partidos (PT, PPS, PC do B, PV, PDT, PSDB, PTB, PMN, PSC, PL, PSB e PT do B) e conseguiu vencer as eleições para a Prefeitura de Rio Branco.
Mais do que uma simples aliança de partidos, a criação da Frente Popular significou a consolidação de um novo projeto político para o Acre, de caráter popular, ético e baseado no desenvolvimento sustentável. Nos vinte anos seguintes, coma ajuda de muitas pessoas, a FPA governou vários municípios do estado, a começar pela capital, Rio Branco, com Jorge Viana, mais para frente Raimundo Angelim e depois Marcos Alexandre. Depois de uma gestão bem sucedida na prefeitura, o trabalho de Jorge Viana foi reconhecido nas eleições de 1998, quando foi eleito para o cargo de governador, e reeleito em 2002, com Binho Marques sendo seu sucessor por quatro anos e Tião Viana em seguida, também reeleito para um segundo mandato, ficou por oito anos. Nesse período do governo de Tião, Jorge Viana foi eleito Senador da República e foi para o Congresso Nacional representar o Acre, função que exerceu com muito trabalho e seriedade.
Os governos da Frente Popular marcam um período de intensas transformações na sociedade, na economia, na cultura e na história do Acre, coincidindo com o período de redemocratização e modernização do Brasil e de crescimento da economia do país, que chegou a situar-se entre as 6 maiores do planeta. Esse período, no Brasil e também no Acre, sofreu uma interrupção brusca em 2016, com o empeachment da presidente Dilma Roussef e em 2018, com as eleições dos atuais governos no país e nos estados. No período de crise, que vivemos desde então, rearticula-se a resistência do povo acreano, assim como do povo brasileiro, na esperança de iniciar um novo momento de progresso social em sua história.
O Futuro
Por: Jorge Viana
Fiz questão de colocar neste resumo histórico a experiência da Frente Popular, nas quais se insere minha participação como prefeito, governador e senador, porque realmente fazemos parte da História e podemos, honestamente, reivindicar a lembrança de uma contribuição positiva na trajetória do Acre e de seu povo. Hoje vivemos um período difícil, que noto quando ando nas ruas da cidade: ao lado de realizações importantes que marcam a evolução de nossa sociedade, das quais tive a honra de participar, vejo a tristeza da miséria e do abandono de milhares de pessoas. Infelizmente, esses momentos escuros também fazem parte de uma história, mas devem ser superados.